quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

Asas

Uns dez anos se passaram, então encontrei nos meus velhos papéis este texto. E ele me fez lembrar de um passarin, o Asa Curta! Personagem da história que minha mãe sempre me contava quando pequena. Assim escrevi, um dia: 

Sempre haverá pirilampos. E sempre haverá anjos azuis. E nuvens, casas de formiga, beijos demorados, caracol, cheiro de terra molhada, pegadas na areia, música linda e banho de chuva. E castelos, menino engraçado, algodão doce, tatuagem, bola de chiclete, sono bom, passeio de moto. Sempre haverá beira de lagoa, tarde com amigos, rock and roll, olhar de desejo, pão quentinho, manhã de sol, praia, mar e água de coco. E baralho, sorrisos, violão, luau, domingo à noite, professor, festa de aniversário e jogo do bicho. E também paquera, ventania, beco, bombom e pirulito, namorado, medo, auto-estima, rede de descansar, livro, arrepio, toque, frio na barriga. E terá pincel e tintas, estrelas brilhosas, gato de botas, futebol, biquíni, pedra e céu. Flamengo, pé-de-pato, ilha, poesia e flor, romantismo, meia velha, sopa de letras, cobertor. Bolsa, Biologia, pingüim, cor-de-rosa e branco, e sonho, lareira, paixão. De que vale tudo isso se eu não aprendi a voar? 

E sem querer vi que minha inspiração tinha surgido do outro texto, que achei naquele livro velho da minha infância: "Asa Curta era um passarinho já muito velho, mas que ainda não sabia voar. Ele tinha aprendido, em seus oito anos de vida, muita coisa que passarinho nenhum desse mundo nunca haveria de saber: pois quem é que já viu passarinho nadar? - e esse nadava; quem é que já viu passarinho ler um livro? - e esse lia; quem é que já viu passarinho dançar, mas dançar mesmo, tudo que é dança que gente sabe dançar: samba que nem samba dançado por brasileiro, tango que nem tango dançado por argentino e polca como os russos, valsa como os austríacos, baião e xaxado que nem os nordestinos, e rock e tuíste e iê-iê-iê e essas danças todas que os americanos já inventaram? E até algumas que ninguém nunca dançou, porque ele mesmo é que tinha inventado e até batizado: o saracoteio, o vira-e-mexe, o passo-do-passarinho, a dança-do-bico-pro-ar?... E havia ainda muita coisa mais que o Asa Curta fazia, diferente de tudo quanto os outros passarinhos sabiam fazer. Ele era mesmo um artista, desses de ganhar prêmio em programa de televisão: dava cambalhota como gente de circo, levantava galho de árvore com uma pata só, imitava voz de homem e voz de mulher, assoviava comendo alpiste... Mas de que adiantava fazer tudo isso - e muito mais que ele sabia fazer e só não fazia porque senão os outros iam pensar que ele era um passarinho louco - de que adiantava fazer tudo isso, se ele não sabia fazer o que o mais novo e o mais analfabeto dos passarinhos de qualquer floresta ou de qualquer cidade era capaz de fazer? De que adiantava ser o passarinho mais famoso que já houve na terra dos passarinhos, se ele não sabia voar?" (Trecho extraído do livro "Bolhas de Sabão")