quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Uma xícara (e meia) de café

Em Santa Cruz de La Sierra e San Fernando Del Valle de Catamarca, café é ópio. Em São Raimundo das Mangabeiras, café é ópio. Em Santa Cruz do Capibaribe, café é ópio. Em todos os cantos. Pra vida esquecer, às vezes, das suas insanidades.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Lavadeira

Dei um grito fdp
Meditei por 3 minutos
Corri na chuva 1 Km
Catei jabuticaba no pé
Fiz bola de sabão no sol
Chorei rindo
Deitei na grama e me cocei
Joguei água nas galinhas
Tomei pinga com gelo
Saculejei o vestido verde
Rolei morro abaixo
Peguei carrapato
Xinguei o mau humor
Cuspi
Soltei fogo pelas ventas
Fiz bico, bufei
Fiz cara de palhaço
Ranquei mato do jardim da praça
Deitei no banco e cochilei
Andei descalça na estrada de terra
Chutei areia do mar
Joguei conversinha fora na esquina
Não fingi gostar de alguém
Nadei, nadei, engoli água
Deixei o cabelo embaraçar
Deixei o sol me queimar
E o picolé derreter na roupa
Quebrei a corda do violão
Comi cinco mangas bitelas*
Tomei banho de mangueira
Ouvi uma música 29 vezes
Cantei alto casa afora
Dancei sozinha pela sala
Pulei na cacunda** do meu irmão
Contei estrelas caídas do céu
Contei carneiros pra dormir
Lutei boxe e capoeira
Acabei com a caixa de bombom
Atravessei o riacho a pé
Me perdi no cafezal
Comi uma melancia inteira
Pedi demissão
Destratei a gente falsa
Me joguei na poça de lama
Me descuidei
Exagerei
Lavei a alma
* Bitelo era palavra usada demais pelo meu irmão Felipe quando pegava aquelas jabuticabas das maiores lá em cima do pé que ficava no nosso quintal. Ele era o escalador oficial da jabuticabeira, ele pequeno de cachinhos, anjinho sem asa. ** Cacunda é palavra usada muito no interior. É palavra que ouvi infância inteira. Cacunda é o mesmo que costas/pescoço/ombro, sabe? Essa região que a gente pode pular e muntar cavalinho, e alguém nos segura pelos joelhos.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Leve-me

Acordei hoje tão leve
Que nem pássaro avoando
Como se de noite, na cama
Anjos me pusessem asas
Serafins colassem penas
Ou palhaços de circo prendessem
Meu vestido
Em bolhas de hélio
Como se avião virasse
Ou em cesto de balão acordasse
Como se nuvem de gotas fosse
Acordei sorrindo pro céu azul
Olhando pro sol
Com vontades de Ícaro
Sonho de borboleta
Como se asas tivesse
De parapente voasse
De repente João de Barro me tornasse
Acordei sem chuva
Com leveza de flocos de algodão 
Pensamentos de fada
Como se de noite, na cama
Um anjo caído, tristonho
Colasse em meu corpo
Pluma branca ou púrpura
Tirada do meu travesseiro
E acordada continuei leve
Sem corpo e sem chão
Alma pura, alma apenas
Sem duras penas
Energia e mais nada

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Guardado

Uma vez, era bem pequena, dessas de andar de calcinha pelas ruas ainda. E de cachinhos negros. Então caí da escada de três degraus da frente de casa e quebrei o dente. Chorei. Fiquei rindo torto e sem graça por um tempão infinito, até aparecer uma fada maluca e me deixar banguela. E acho que é por isso que até hoje tenho medo de rir sem guardar o sorriso com as mãos.

terça-feira, 2 de junho de 2009

Anjo Nato



Outro dia nasceu
Um anjo Renato
Por natureza:
Anjo Nato
Carpinteiro Nato
Conversador Nato
Motorista Renato
Bailarino Nato
Passarinheiro Nato
Por ser anjo Nato
Renato renasceu
O coração imenso
Não cabia no peito
Pediu mais espaço
E Deus atendeu
Voou com as asas
De pássaro cantor
A auréola luminosa
Guiou seu caminho
Sentou-se na nuvem
Azul celeste
Foi contar pra Deus
As coisas da Terra
* Texto escrito em dezembro de 2008 à Renato Grillo.

terça-feira, 28 de abril de 2009

A Dona Inah


Todos os dias ela almoça no mesmo restaurante e senta-se no mesmo lugar, lendo seu costumeiro jornal de notícias. Ela tem cabelos muito brancos e fará 97 anos daqui uns dias. É leonina. Anda sempre bem arrumada, combinando saia e sapatos, e leva consigo uma bolsinha colorida à tiracolo. Ah, um dia contou-nos, a mim e à minha amiga, sua história: tinha dois filhos. No dia do casamento de seu filho mais novo, o mais velho, que morava pro Centro Oeste do país, estava a caminho quando acidentalmente viajou para o céu. Ah, o contraste que a vida de vez em quando coloca na vida das pessoas. A extrema oposição de céu x inferno. Um filho casando-se e outro indo embora. Disse a dona Inah: "Se existe inferno, ele é aqui. Não há como ser em outro lugar. Não há como existir coisa pior..." E enquanto dizia estas palavras, lia concentradamente seu jornal e dizia também: "Não sai nada de bom nessas folhas, só coisa ruim, assalto, morte, desastre, tiros... " Não disse em tom de reclamação, e sim com certa tristeza pelo rumo que o mundo tomou. Ao que estava também coberta de razão. Ela olhou-nos, em dado momento, e disse, diante de nossa ainda presente juventude: "Um conselho de quem já viveu bastante: não fiquem velhas!" E sorria o seu riso de quem muito viveu, muito amou e sofreu, ainda cheia de doçura para dar e visão clara diante dos fatos da vida. Disse ainda a respeito da falta de respeito que há hoje em dia: "Meu pai, quando eu era convidada para pular o carnaval na praia, não me liberava dizendo ser pecado. E o que não diria ele hoje, diante dos acontecimentos a cada dia mais escandalosos?" Despedimo-nos e seguimos sob seus votos de felicidade. Ela era doce. Ela, que não escutava o que a gente dizia, e ainda assim travou longo diálogo e foi muito esperta em suas colocações. E dizia assim, enquanto nos afastávamos: "Ah, eu não escuto, não consigo escutar, logo eu que gosto tanto de conversar..."