sexta-feira, 23 de julho de 2010

Elas

Aquele sorriso gigante, real, sem pudor, ela dava apenas a si mesma: diante do espelho. Olhava e olhava, mexia, sorria, mirava-se sob todos os possíveis ângulos que um espelho pode criar. A mais ninguém se entregava assim. Só à ela, à sua imagem paradoxal, exótica, vulgar. E experimentava sensações, impactos, de batom carmim ou blush exagerado, de cabelos revoltos ou presos num coque transversal. A gargalhada sempre vinha. Era sempre bem vinda. Os olhos apertavam até virarem dois tracinhos de desenho japonês. Ela não sabia se dividir com ninguém. Mas experimentava a felicidade, pois podia multiplicar-se consigo mesma, virando boneca ou dançarina de noites de lua, camponesa ou fada de asa torta, segundo a ótica daquele vidro refletido. Era uma e era mil. E o sorriso era só pra ela; e era pra todas que ela podia ser sem ser.

domingo, 28 de fevereiro de 2010

Menino Felipe


Ele brincava quieto no quarto, todo concentrado em sua rotineira atividade de desmontar as coisas, carrinhos, relógios, rádios de pilha, bonecos do Paraguai. Dava pra Engenharia desde pequenino. A família estava despreocupada. Então, Felipe sai chorando do quarto ao descobrir o mistério:
- Pai, mãe, o mosquito mordeu meu olho!
Era incompreensível aquele choro. E como era infinito, não sobrava espaço pra investigações. Até Felipe chegar num estágio de calma e apenas fungadas espaçadas, todos estiveram inquietos procurando explicação para mordida de mosquito dentro do olho.
Ele, então, mostrou em seu cantinho de olho aquele orifício por onde saem as lágrimas, para comprovar sua teoria de menino:
- Olha, ele me mordeu, mordeu meu olho! Olha o furinho da mordida!
* Texto para Felipe Fassarella, amor de menino.

Mariana

Como mais velha de toda uma família de primos, ela tinha aquele papel de mãe, e cuidava. Cuidava muito lendo histórias para os menorzinhos. Quando um dia resolveu contar a história da Branca de Neve para a Mariana, tão pequenina, deu choro. A história era assim: "Havia uma bruxa muito má naquele reino. Ela vivia maltratando a Branca de Neve, dizia o tempo todo que ela era muito feia. Certo dia, a bruxa má perguntou a seu espelho..." Choro. Choro sem fim. E perguntas: - Mariana, por quê você está chorando, meu bem? Não está gostando da história? Quer outra? E explicações: - Eu tô chorando porque eu não sou bruxa, eu não quero ser a bruxa! - Mas você não é bruxa, não, você é a Branca de Neve! Ninguém falou que você é a bruxa, coisa mais linda... - Mas você falou, e eu não quero ser a bruxa! Não quero! E mais choro, choro doído, inconsolável! O apelido dela era Ma.
* Texto para Marianinha, que já ouviu pessoalmente essa história e morreu de rir com seus olhinhos apertados.

Persistência

Há dias, muitos dias, ou talvez há meses, existe aqui dentro uma vontade de tomar um banho de água de côco! Só pra saber que gosto tem. E que cheiro. E pra beber bastante água, sem medir, sem parar, até explodir.

Coisas de Maria

Maria Clara queria água. Mariazinha era pequena, de uns três anos, por aí. Não, acho que quatro. E queria água. Foi cantarolando de mãos dadas em seu vestidinho florido cor-de-rosa até a cozinha, onde lhe encheram uma tacinha com água. Maria segurou firme o copo, entrelaçando os dedos ao redor. E paralisou-se, olhos abertos, assustados: - Não quero essa água, quero outra. - Bebe essa, Maria, pode beber, tá gostosa! - Essa não quero, me dá outra água que essa tá cheia de minhocas! Foi preciso entrar na brincadeira, usar a tal psicologia infantil: - Nossa, olha lá quanta minhoca! É mesmo! Mas elas são boazinhas, não vão te fazer nada. E a resposta era a insistência da Maria: - Não quero água de minhoca! Não quero! Eca! Quero água pura! Logo em seguida, a percepção, a explicação e as gargalhadas das duas: o copo meio transparente de plástico deixava entrever os dedinhos fininhos de criança da Maria! 
* Texto feito graças à todo o encantamento e bom humor da Mariazinha. É pra ela!

domingo, 24 de janeiro de 2010

Sonho Desfeito

Ela contou numa emoção sua lembrança de infância assim que viu a camiseta desenhada, cheia de pequenas bailarininhas: "Acho que tenho um trauma de infância. Quando era pequena, morria de vontade de fazer balé, era meu sonho! Mas minha mãe não me colocava, nunca tinha dinheiro! O meu maior desejo era chegar na escola com as pontas dos dedos pocadas, esfoladas e com band-aid, igual as outras menininhas que eu via com os pés machucados, aqueles dedinhos ralados de tanto usar sapatilha com gesso na ponta". Eu ouvia em silêncio. E do meu silêncio contemplava, sorrindo, num passado bem próximo, a carinha infantil, a menininha olhando com tristeza os pezinhos das coleguinhas, aquela tristeza desejosa e frágil, desamparada, típica das crianças. Nesse instante, então, me deu vontade de pegar aquela moça no colo e levá-la, com sapatilha e tudo, pra realizar seu sonho num salão qualquer, repleto de bailarinas, saias de filó e música...
* Texto para Natália Ribeiro.